A convivência entre comunidades tradicionais e a onça-pintada na Amazônia é marcada por histórias, crenças e práticas que atravessam gerações. No Amapá, região que abriga um dos maiores contínuos de floresta tropical preservada do país, os saberes locais têm desempenhado um papel fundamental para a conservação desse grande felino, considerado símbolo de equilíbrio dos ecossistemas.
As comunidades ribeirinhas, indígenas e extrativistas do estado acumulam uma relação íntima com a floresta. Para além do convívio diário, carregam um repertório de percepções que ajuda a identificar rastros, entender comportamentos e até reconhecer mudanças sutis na presença das onças.
Esse conhecimento tradicional, construído em diálogo constante com a natureza, tem sido cada vez mais valorizado por pesquisadores e projetos de conservação. De acordo com o ICMBio, integrar os saberes locais às estratégias de proteção da biodiversidade é essencial para o sucesso de ações em áreas de uso sustentável, como Reservas Extrativistas (RESEX) e Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS).
Conhecimento tradicional como ferramenta de conservação
Em muitas culturas da Amazônia, a onça não é apenas um animal: ela representa força, mistério e sabedoria. Segundo a Tucum Brasil, diversos povos indígenas a reconhecem como uma guardiã da floresta, capaz de transitar entre o mundo dos vivos e o mundo espiritual. Essa presença simbólica é também um lembrete do poder da natureza e da importância de viver em harmonia com ela. Histórias e lendas passadas de geração em geração reforçam a ideia da onça como uma entidade que protege e, ao mesmo tempo, inspira respeito.
Essa dimensão cultural fortalece o olhar sobre a espécie não apenas como parte da fauna, mas como elemento de identidade e memória coletiva. Experiências em outras regiões da Amazônia, como na Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Mamirauá, mostram que, quando as comunidades participam da construção de soluções para reduzir conflitos — como ataques a criações de animais —, os resultados são mais eficazes e duradouros. Além disso, iniciativas de turismo de base comunitária têm transformado a percepção da onça: de um animal temido para um símbolo de orgulho e oportunidade de geração de renda.
Conservação e desafios para a floresta do Amapá
O Amapá é hoje um dos estados mais preservados da Amazônia, com mais de 70% de seu território protegido por unidades de conservação e terras indígenas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Esse cenário cria condições favoráveis para a presença da onça-pintada, mas também impõe desafios diante do avanço do desmatamento em áreas vizinhas e das mudanças climáticas.
O desmatamento na Amazônia não ameaça apenas a sobrevivência da onça-pintada, mas compromete diretamente a vida das populações tradicionais que dependem da floresta para sua subsistência. Ao perder áreas de floresta, diminuem os recursos naturais que garantem alimentação, água limpa, ervas medicinais e espaços de convivência cultural dessas comunidades. Para os animais, a fragmentação do habitat dificulta a caça, o deslocamento e a reprodução, gerando conflitos cada vez mais frequentes entre humanos e fauna.
Embora o Amapá apresente índices de desmatamento relativamente baixos, é importante destacar que qualquer perda de cobertura florestal pode afetar negativamente as comunidades tradicionais e a biodiversidade local. Além disso, a fragmentação do habitat dificulta a movimentação e a reprodução de espécies como a onça-pintada, aumentando os conflitos entre humanos e fauna.
Comunidades na linha de frente: proteção da floresta e da fauna
Diante desses desafios, iniciativas que unem ciência e saberes locais se tornam ainda mais essenciais. No Amapá, a proteção das florestas e a redução do impacto do desmatamento só são efetivas quando as comunidades tradicionais participam ativamente das estratégias de preservação. Esse engajamento permite que o conhecimento acumulado ao longo de gerações seja incorporado às ações de monitoramento e manejo da fauna, criando soluções adaptadas à realidade local e fortalecendo a resiliência tanto da população quanto dos ecossistemas.
Iniciativas como o Projeto Onças do Amapá têm buscado fortalecer essa ponte. Ao lado das comunidades, nossos pesquisadores registram a presença das onças por meio de armadilhas fotográficas, coletam informações através de entrevistas semi-estruturadas com comunidades tradicionais e identificam práticas locais que favorecem a convivência harmoniosa com o animal. Cada informação compartilhada amplia a compreensão sobre o território e ajuda a construir estratégias de conservação mais sensíveis às realidades locais.
Mais do que proteger uma espécie, unir conhecimento tradicional e científico significa preservar um modo de vida e garantir que a floresta siga cumprindo seu papel vital para o planeta. As comunidades do Amapá mostram que a conservação nasce do respeito e da escuta. Nesse diálogo, a onça deixa de ser apenas um felino ameaçado para se tornar um símbolo vivo da interdependência entre pessoas e natureza.
